No mês de março, a Netflix gerou preocupação e revolta nos espectadores com o lançamento da série “Adolescência” (“Adolescence”, 2025). O drama segue uma investigação policial no Reino Unido e desespera logo na primeira cena: a polícia invadindo uma casa comum para prender James, um menino de 13, pelo assassinato de uma colega de classe.
A morte de uma criança por si só já é um tema difícil, mas quando um menino possivelmente assassina uma colega de classe a facadas, o tema ganha um novo grau de seriedade. A complexidade do caso aumentou ainda mais quando a Netflix divulgou os bastidores da série e revelou o fato verídico que levou ao desenvolvimento da produção: a violência entre crianças - principalmente de meninos contra meninas - na Inglaterra está aumentando.
Em 2024, o número de crianças hospitalizadas após agressão com armas brancas no Reino Unido foi de 509. A incidência desse tipo de caso aumentou em 9% em comparação ao ano de 2023. Nas ilhas britânicas, 49% das adolescentes que experimentam relacionamentos amorosos relatam terem vivenciado comportamentos violentos e 67% das meninas em idade escolar sofreram algum tipo de assédio sexual. A misoginia alcançou uma nova geração e está se manifestando com violência e abuso.
Aumento da violência de meninos contra meninos: o que a série “Adolescência” fala sobre esse novo problema social
Quando os jornais começam a divulgar matérias com manchetes do tipo: “Adolescente do Reino Unido se declara culpado de matar três meninas em ataque com faca em Southport” ou “Rapaz que esfaqueou menina com espada de samurai é detido”, fica claro que algo está errado. O que levaria uma criança a fazer algo tão terrível? Essa foi a pergunta que deu início à produção da Netflix.
Porque um menino normal de 13, 15 ou 16 anos, com uma família tradicional e saudável, sem grandes problemas financeiros ou sociais, chegaria ao extremo de carregar uma arma e, pior, usá-la contra uma colega de escola, uma vizinha ou simplesmente uma desconhecida que estava em um ponto de ônibus na hora errada? Os responsáveis por “Adolescência” não tinham a menor intenção de isentar os responsáveis ou de diminuir a dor e a perda dos familiares das vítimas. Seu objetivo era entender o que causou essa mudança social e deixou esses meninos com tanta raiva:
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Dificuldade de comunicação intergeracional
Em um dos episódios, fica claro que os adultos em geral não falam a mesma língua que as crianças. Em questão de educação - escolar ou parental - essa diferença causa afastamento geracional e deixa os jovens mais vulneráveis a influências negativas. Nesse ponto, a neurociência já diz: prender a atenção de crianças e adolescentes exige preparo e adaptação. Educar nos dias de hoje requer recursos novos e uma linguagem moderna.
Por exemplo: na série, o detetive responsável viu o Instagram como uma fonte importante de provas e evidências. Contudo, não foi realmente capaz de entender o que estava analisando. Para ele, os comentários que via mostravam uma relação de amizade entre Kate e James. Foi necessário que ele se adaptasse à cultura do filho para entender que os emojis que ela usou eram, na verdade, cyberbullying:
“dinamite (🧨)” = red pill - extremista anti feminista - e Incel - alguém incapaz de atrair a atenção feminina.
“100 (💯)” = referência distorcida ao Princípio de Pareto: 80/20. (80% das mulheres estariam interessadas em 20% dos homens)
Além de encontrar um motivo para o assassinato, a adaptação de costumes e linguagens possibilitou ao detetive entender melhor o filho e, por isso, eles tiveram um momento de proximidade. O menino mostrou que confia e busca apoio no pai e isso é fundamental para um desenvolvimento social sustentável e seguro.
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Bullying
James não está - de forma alguma - incluso em um padrão estético ou comportamental. Ele é tímido, fica na dele, passa despercebido e tem uma composição corporal frágil: é pequeno e não aparenta força. Essa caracterização foi importante tanto para a escolha do ator que interpretou a personagem, quanto para construir sua realidade social.
No segundo episódio, a violência física, verbal e psicológica dos alunos ganha um protagonismo novo. As crianças não estão apenas zombando uma das outras, mas dos professores e de figuras de autoridades - inclusive dos próprios policiais. Chegam a zombar do filho do detetive na frente do pai, chamando-o de apelidos pejorativos.
Para os psicólogos que ficam responsáveis pelo caso do menino, ele relatou que sofria rasteiras e que cuspiam nele. Em casa, se sentia obrigado a praticar esportes que o pai gostava e se isolava quando não tinha um bom desempenho. Com observação, ferramentas em neurociência e estratégias pedagógicas, os pais e professores teriam percebido que o comportamento poderia significar algo mais.
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A “Manosfera” e o Involuntary Celibacy - INCEL (Celibato involuntário)
O episódio 3 deixa muito claro que o psicológico do rapaz passava por um certo desequilíbrio. Ele chegou a ter surtos de raiva durante uma sessão de terapia e assustou a psicóloga mais de uma vez. Ele mostra problemas em respeitar a figura feminina e demonstra raiva quando ela dá ordens a outro homem.
Comportamento que se encaixa na cultura que o movimento da “manosfera” - mencionado na série - tenta propagar na internet. Para essa rede, o feminismo torna as mulheres perigosas e a submissão feminina é a única forma de recuperar a masculinidade. Algo têm em comum com o subgrupo Involuntary Celibacy - INCEL. Que acredita ter direito a relacionamentos com mulheres, mesmo sendo incapazes de encontrar uma parceira. Por isso se sentem isolados e excluídos e trocam experiências na internet, chamando a atenção de crianças que possam se sentir da mesma forma.
Nesse ponto, a neuroeducação e a alfabetização para a internet, para a sociedade e para o saber reconhecer uma influência negativa, surgem como ferramentas que envolvem processos decisórios para a vida. Assim como a internet surge como uma vilã na vida de James e de crianças da sua idade.
Crianças na internet: o risco do acesso não supervisionado e irrestrito e como isso é abordado na série
A internet surge como um problema a parte da série, nunca o foco, mas sempre uma preocupação. Ela é a origem de provas, lugar onde o suspeito sentia confiança para postar fotos e o ponto de conexão dos jovens com grupos radicais que influenciam à violência. James já tinha problemas psicológicos prévios e é aconselhado a aceitar ajuda por isso. Contudo, várias situações agravaram seu quadro e levaram suas tendências a aparecer prematuramente, e um desses pontos foi a internet.
Atualmente, crianças chegam a passar cerca de 4h online por dia. Ao todo, são mais de 1400 horas por ano, aproximadamente 60 dias seguidos, em conexão com a WEB. Em contrapartida, só 2 em cada 10 pais dizem seguir as pegadas digitais que os filhos deixam. Ou seja, 80% das crianças usam a internet de forma irrestrita e estão expostas a todo tipo de perigos, incluindo a influência de grupos radicais e violentos.
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A citada “manosfera”, apesar de estar presente no mundo real através de violência e falas misóginas, é uma comunidade majoritariamente virtual. Esses homens se sentem seguros na WEB para propagar suas ideias. É por meio da rede - e da conexão com bilhões de pessoas - que eles aumentam seu alcance, conseguem novos adeptos e acreditam recuperar seu lugar no mundo.
E que público melhor do que crianças que estão isoladas de pais e responsáveis, se sentem sozinhas e injustiçadas e precisam de alguém para culpar por suas infelicidades? James é só o exemplo de uma população enorme que está entrando de cabeça nesse pensamento misógino e tomando ações violentas por influência do que leem e veem na internet.
Já com 13 anos, o protagonista da série compartilha imagens de mulheres seminuas, se cerca de homens que pensam como ele, se acha vítima da sociedade e tem uma ideia muito clara sobre o papel da população feminina. Ele chega a dizer que Kate era “reta” demais para o seu gosto, que a psicóloga é “gata” e por isso tem poder de escolha e que o único problema em homens que espalham “nudez” é o fato de que são burros de quebrar a confiança antes de conseguir mais material.
Não é estranho que ele tenha encontrado e entrado para a “manosfera”. Na verdade, analisando o contexto da série, essa é a realidade de todas as crianças da idade de James: Kate usa o termo INCEL para ofendê-lo, o filho do detetive explica os conceitos e as outras crianças usam ideias do grupo para ofender umas às outras, a exemplo da polêmica frase: “apanhou de mulher? Seu babaca”.
Comportamento que é reforçado pela ignorância dos adultos responsáveis. Os pais de James admitem que o filho passava tempo demais trancado no quarto, acessando a internet e vendo coisas que eles sequer poderiam imaginar. A reação do pai ao ver o que ele compartilhava em seu Instagram já revela um fato importante sobre a dinâmica familiar: os pais não faziam ideia de como ele passava as horas na WEB.
Mais do que um grupo escondido no lado escuro da rede virtual, a “manosfera” aparece como um forte influenciador para os jovens - principalmente meninos. Ela moldou o comportamento de James para a violência contra as mulheres e para a crença de que ele “não fez nada errado”, e faz o mesmo com milhares de crianças, todos os dias. Esses grupos radicais são fatores de risco para o desenvolvimento social de crianças em qualquer idade, basta que tenham um acesso e nenhuma educação sobre o uso seguro da internet.
Educar para a internet: uma nova vertente didática
Viver em sociedade não é uma habilidade com a qual o ser humano nasce. Ela exige preparo, aprendizado e um esforço coletivo de pais, professores e qualquer outro adulto responsável que faça parte do desenvolvimento físico, mental e emocional de uma criança. Lógica que é bem explicada nas palavras de Maria Silvia Santana e Jimmy Pierre:
“a educação é elemento fundamental na formação do indivíduo, mediando a relação entre as esferas da vida cotidiana e a não cotidiana da prática social”.
Segundo o psicólogo Lawrence Kohlberg, essa mediação social é fundamental na construção de personalidade e na percepção do que é certo e do que pe errado. O desenvolvimento de uma consciência ética é resultado da educação e do exemplo moral de quem está mais próximo na fase de desenvolvimento.
A infância é o período humano de maior vulnerabilidade. Nesse momento da vida, as pessoas estão mais suscetíveis a mudar sua personalidade e a fazer escolhas com base no meio em que vivem. Ou seja, desenvolver valores, normas de conduta e práticas sociais são processos individuais que sofrem influência das pessoas que fazem parte da história de cada indivíduo.
Enxergando a internet como uma nova camada da sociedade, faz sentido pensar que assim como os pais e professores ensinam o que é certo ou errado no mundo real, também devem ensinar isso para o meio virtual. As crianças têm que ser ensinadas a evitar más influências, descartar os péssimos exemplos, não repetir as experiências erradas e abandonar hábitos que fazem mal e isso é uma educação para viver em sociedade tanto no mundo real, quanto no virtual.
A série despertou preocupação social para essa problemática e repercutiu nas redes. Pais estão horrorizados com os caminhos que os filhos fazem na internet e até órgãos públicos nacionais vieram a público com informações que todos os adultos deveriam ter quando o assunto é o que as crianças estão fazendo na internet.
Neste post, o Ministério da Educação (MEC) reforça que o papel dos pais não é fiscalizar, controlar ou censurar, mas mediar, acompanhar, conversar sem julgamentos e com termos e temas que eles reconheçam, educar e estar atento a sinais de perigo, como problemas de sono, mudanças de peso, quedas no desempenho, isolamento, irritação ou agressividade. Contudo, esse trabalho não termina em casa: a maioria das crianças e adolescentes passa mais tempo na escola - com professores e outros responsáveis - do que com os pais e por isso educar para a internet é um trabalho de todos.
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A história de James e Kate poderia ser diferente se os pais tivessem sido mais presentes na vida dos filhos adolescentes e os adultos em geral tivessem se esforçado um pouco mais para encontrar um lugar nesse novo universo que é a WEB. A passagem do real para o virtual exige uma adaptação em termos de ética e moral, já que o certo e o errado ganham novas proporções nesse ambiente. Assim como educar para a sociedade também exige uma alteração de perspectiva.
Conclusão
Enquanto entretenimento e drama psicológico a série “Adolescência” reflete um problema social que está crescendo ao redor de todo o globo. Historicamente, a misoginia e o machismo são questões que a sociedade enfrenta diariamente. Feminicídio, agressões sexuais e qualquer tipo de violência motivada por gênero representam números alarmantes nos registros de crimes em qualquer país, mas agora - e como a produção da Netflix retrata - está envolvendo uma nova parcela da sociedade: as crianças.
As mudanças sociais, as diferenças geracionais e a internet facilitam o contato de jovens com grupos que representam influências perigosas. Surge então a necessidade de um novo tipo de educação. Adultos em geral - que fazem parte do desenvolvimento das crianças - precisam se adaptar a essa nova geração. O objetivo é estabelecer confiança e se tornaram a maior influência que esses adolescentes têm enquanto crescem.
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