Mudança na estrutura de cuidados paliativos no Brasil: portaria GM/MS nº 3.681 e Hospital Mont Serrat.
A política pública é um marco histórico na área da saúde e vai afetar tanto os pacientes, quanto os profissionais da medicina, enfermagem, assistência social e outras áreas.
Em 2022, o Journal of Pain and Symptom Management - da Academia Americana de Medicina Paliativa - publicou um ranking de qualidade de morte. A lista categorizou 81 países de acordo com as políticas públicas existentes, a qualificação de equipes, a educação popular, o acesso à medicação e outros fatores relacionados aos cuidados paliativos. Para os profissionais brasileiros que atuam na saúde, a posição do Brasil - 80ª lugar - não surpreendeu.
A Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP) está há mais de 19 anos lutando para que o governo reconheça o cenário nacional como problemático. Atualmente, há 634 mil brasileiros precisando de cuidados paliativos no Brasil para - de acordo com o Atlas de Cuidados Paliativos da ANCP de 2022 - 234 serviços assistenciais disponibilizados pelo Estado. O que contabiliza 1 serviço para 1,6 milhão de pessoas (na rede pública) e 1 para 1,4 milhão (na rede particular).
O ideal - segundo a Associação Europeia de Cuidados Paliativos - seria de 2 serviços para cada 100 mil habitantes.
Melhorar a qualidade de vida de pacientes e familiares diante de casos crônicos ou que precisam esperar para ter acesso a uma cura/tratamento/cirurgia é uma preocupação que está na lista de prioridades da área da saúde. Contudo, e por mais que algumas histórias emocionantes tenham ganho a atenção do país, houveram poucas vitórias reais. O que deixou de ser verdade entre o final de 2024 e começo de 2025, com a publicação da portaria GM/MS nº 3.681 e a inauguração do Hospital Mont Serrat em Salvador.
O que são cuidados paliativos?
A Organização Mundial da Saúde (OMS) define cuidados paliativos como: “uma abordagem que melhora a qualidade de vida dos pacientes (adultos ou crianças) e de seus familiares que enfrentam problemas associados”. Na prática, isso significa prevenir e aliviar o sofrimento, avaliar corretamente o paciente, tratar a dor e outros problemas de natureza física, psicossocial ou espiritual.
No que tange oferecer uma assistência completa em cuidados paliativos, o Instituto Nacional de Câncer (INCA) essencializa uma equipe multidisciplinar preparada para personalizar cada atendimento de acordo com as necessidades do paciente e de sua família. Esses cuidados, apesar de carregarem uma conotação passiva, requerem tratamentos ativos com medicação, terapia, educação, apoio e outros cuidados práticos em saúde.
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Ele pode ser oferecido tanto em ambiente hospitalar e clínico quanto em domicílio. Neste último caso, a equipe de assistência visita o paciente tanto quanto necessário - em alguns casos, isso pode significar um acompanhamento diário. O tratamento em casa também representa um maior contato com a família, o que é fundamental para dar continuidade às ações que aliviam sintomas e proporcionam conforto.
Por mais que o objetivo da atenção paliativa seja oferecer qualidade, conforto e alívio, esse atendimento pode atuar também no prolongamento da vida. Ao evitar tratamentos agressivos - como cirurgias e medicações com efeitos colaterais severos - e controlar os sintomas, esses cuidados reduzem o estresse físico e emocional e aumentam a autonomia, o que impacta positivamente a estimativa de sobrevivência.
Foi o que Jennifer Temel e outros pesquisadores observaram em 2010, em um estudo com pacientes oncológicos. Eles dividiram as pessoas em grupo A (que recebeu apenas o tratamento padrão) e o grupo B (que recebeu, além dos antineoplásicos, cuidados paliativos precoces) e analisaram como cada caso se desenvolveu. O resultado final foi que o grupo B viveu, em média, 2,7 meses a mais, com menos sintomas físicos e mentais e melhor qualidade de vida em geral.
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Há muitas vantagens humanas e até econômicas nos cuidados paliativos. Sua importância ganhou o reconhecimento da OMS em 1990, sendo que antes disso a área da saúde já demonstrava interesse histórico em oferecer conforto e melhorar a qualidade de vida em pacientes no fim da vida. No Brasil, esses serviços estão sucateados há anos, mas em 2024 o Ministério da Saúde lançou uma portaria que promete mudar esse cenário e em 2025 um hospital público especializado em oferecer esse conforto foi inaugurado na Bahia.
Novo cenário em cuidados paliativos no Brasil: Portaria GM/MS nº 3.681 e Hospital Mont Serrat
A Portaria GM/MS nº 3.681, foi publicada em 7 de maio de 2024 com previsão para estar em vigor na maior parte do Brasil até o final daquele ano. Por meio dela, o atendimento paliativo passa a ser uma política do estado - obrigação federal, estadual e municipal - e parte da Rede de Atenção à Saúde (RAS), ou seja, serviço obrigatório a qualquer instituição de saúde do SUS. Ter o conforto e a qualidade de vida assegurados por assistência especializada é agora um direito de toda pessoa com casos crônicos, que ameaçam a vida, ou incuráveis.
Assim, os principais objetivos da publicação são: expandir o tratamento - para abranger mais brasileiros, profissionais e práticas clínicas - e, consequentemente, transformar o campo. Para alcançar esse resultado, o governo federal investirá 900 milhões de reais para contratar profissionais e criar 1.300 novas equipes de assistência.
Em comentário para o Jornal da Unesp, o professor do curso de geriatria, Edison de Oliveira Vidal, disse que o documento foi redigido de acordo com os princípios aceitos internacionalmente para proporcionar cuidados e atendimentos físicos, psicológicos, psicoemocionais, sociais e espirituais. Além disso, fica estabelecida uma equipe mínima - com obrigatoriedade de profissionais em medicina, enfermagem, psicologia e assistência social - e a integração entre todos os serviços da RAS - incluindo urgência.
O SAMU também tem um papel importante nessa mudança. Parte da verba será utilizada para viabilizar atendimento domiciliar em caso de agravamento dos sintomas. Não só isso, mas a publicação também dá mais autonomia aos profissionais da assistência móvel, incluindo a possibilidade de atestar óbito. Dessa forma, os pacientes podem ficar no ambiente de casa, que é mais acolhedor e familiar, o que também reduz gastos desnecessários com internação.
Já no contexto das práticas citadas, o Ministério da Saúde requer dos profissionais que vão fazer parte das novas equipes: um atendimento centrado no paciente, feito com transparência, comunicação acessível, humanização e empatia. A rotina clínica terá de incluir escuta qualificada, base em evidências, cuidado contínuo e respeito à autonomia, dignidade e desejo da pessoa cuidada. Além disso, a formação e qualificação contínua são, além de destaques, uma exigência para renovação de contratos.
Apesar de não ter ligação direta com essa portaria, a inauguração do Hospital Mont Serrat – Cuidados Paliativos, em Salvador, merece ser mencionado como um marco nacional nesse campo. É a primeira instituição hospitalar brasileira a focar em “atenção à saúde humanizada em prol da qualidade de vida de pacientes graves, crônicos ou em finitude”. O hospital possui 70 leitos de enfermaria (tanto adulta, quanto infantil), além de infraestrutura para ambulatório, telemedicina e bioimagem.
A estimativa é que 2.000 pacientes recebam atendimento mensalmente, podendo contar com o apoio de unidades para terapia da dor e interconsulta em diversas especialidades. Pacientes internados terão acesso a cardiologistas, infectologistas, nefrologistas, psiquiatra, entre outros. O cuidado se estende aos familiares, que através do Mont Serrat encontram apoio ao luto.
O real impacto dos cuidados paliativos: a história de Hugo Barbosa e do setor de Serviços em Cuidados Paliativos do HC da Unicamp
Na introdução, foram mencionadas histórias comoventes que demonstram a preocupação de profissionais da saúde em oferecer conforto e qualidade de vida aos pacientes. Apesar de esse artigo ter outro foco, alguns desses momentos merecem ser lembrados tanto para reforçar a importância do atendimento humanizado quanto para enfatizar o carinho e o cuidado que médicos, enfermeiros, farmacêuticos e todos os membros da equipe de atendimento em saúde, desenvolvem por seus pacientes. E é impossível falar disso sem mencionar a Unicamp.
Seis anos antes da PNCP entrar em vigor, o Hospital das Clínicas (HC) da Unicamp lançou o setor pioneiro de “Serviço em Cuidados Paliativos”. Desde sua inauguração, o projeto atendeu quase 2 mil pessoas com remédios, exames e a sensibilidade para oferecer as comidas preferidas, um “parabéns pra você” no aniversário, um sorriso e a sensação de ser lembrado pelas pessoas ao redor.
Esse é o conforto emocional que alivia o peso de saber que o fim está chegando. Uma história marcante é a de Hugo Barbosa que, ao se recuperar de um acidente, descobriu um câncer no intestino. Após muitas cirurgias, ele foi internado sem perspectivas de voltar para casa. Todo o processo até o diagnóstico final durou um ano e, nesse meio tempo, Hugo não deixou de enaltecer seu amor por Recife - sua cidade natal. O sonho do idoso era voltar para “a terra dele” e, com o passar dos dias, fazer isso acontecer passou a ser a missão da equipe que cuidava dele.
O processo foi longo. Tiveram de fazer testes para averiguar quanto estresse o corpo de Hugo aguentaria, levaram o senhor a ambientes externos ao hospital para descobrir quanto tempo ele poderia passar longe: o suficiente para um voo, foi constatado. O próximo passo foi correr atrás de um transporte aeromédico, o que infelizmente não deu certo. A única solução possível então foi coordenar com a família do paciente para colocá-lo em um voo comercial e conseguir atendimento médico em Recife.
Com o apoio do Wishes - projeto que realiza os últimos desejos de pacientes paliativos que são atendidos no hospital universitário, conseguiram comprar a passagem e garantir um leito em Pernambuco para atender Hugo. A médica Letícia Costa se voluntariou para acompanhar o idoso e todos os membros da equipe se reuniram para a despedida e o senhor embarcou no avião e reencontrou sua família com um sorriso no rosto.
Embora tenha tido pouco tempo em Recife - ele faleceu uma semana depois da transferência - Hugo estava feliz e confortável, chegou até a ir à praia, caminhar descalço na areia, beber uma água de coco à beira mar. Para sua família, esse final foi marcante: “Vocês compartilharam a nossa dor e realizaram o sonho de Hugo, que era voltar para casa. Não temos como pagar, a não ser com a nossa amizade e gratidão eterna. […] Deus enviou vocês para nos ajudar a atravessar esse rio de águas turbulentas e possibilitar uma passagem segura para Hugo”, disse o irmão do paciente em mensagem de agradecimento à equipe hospitalar.
Cristina Terzi - coordenadora do serviço de cuidados paliativos do HC da Unicamp - reforça a visão dos profissionais da saúde em casos como o do senhor Barbosa e de outros pacientes que precisam de cuidados paliativos. Segundo a médica intensivista e paliativista, a atenção especializada faz toda a diferença na forma como o paciente encara os últimos dias. “Quando o cuidado paliativo é bem feito, conseguimos modificar o fim de vida para que o paciente tenha o menor sofrimento possível e possa vivenciar momentos que não teve oportunidade antes”, esclarece.
E essa é apenas uma história das muitas cujo final, o HC da Unicamp ajudou a mudar. Desde sua criação em 2018, o projeto de cuidados paliativos - com apoio do Wishes - realizou milhares de últimos sonhos, fazendo toda a diferença.
“Continue ajudando pessoas”, essa foi a mensagem que Hugo deixou para Roberta Antoneli - enfermeira paliativista que cuidou do seu caso - em sua despedida. Essas palavras marcam as profissões da saúde e a diferença que os cuidados paliativos fazem na experiência do paciente.
Conclusão
Historicamente, o Brasil tem um gargalo severo no que se refere a oferecer conforto e dignidade a pacientes crônicos, incuráveis ou no final da vida. Nesse ponto, a publicação da Portaria GM/MS nº 3.681 e a inauguração do Hospital Mont Serrat representam um avanço moral e humano no cuidado à vida, reconhecendo que o cuidado paliativo é essencial no tratamento dos pacientes.
Trajetórias como a de Hugo e do setor de Serviços em Cuidados Paliativos, projetos como o Wishes e pesquisas como a de J. Temel reforçam que a preocupação com esse campo clínico é de extrema relevância à saúde e pode fazer toda a diferença. Cuidar de um paciente é - muito além da saúde física - se preocupar com a vida em todas as suas camadas, incluindo o emocional, o espiritual e o familiar.
As mudanças nacionais mostram que Cuidados Paliativos é uma área em desenvolvimento, com muito a acrescentar não apenas aos pacientes, mas também aos profissionais da saúde. Você também tem o poder de fazer a diferença e oferecer cuidado e conforto que mudam vidas: baixe nosso e-book gratuito e aprenda técnicas práticas paliativas práticas e integradas a sistematização da enfermagem, com base no estudo de um caso real vivenciado pela coordenadora dos cursos de enfermagem da pós-EAD São Camilo.