No setor alimentício, uma das maiores preocupações é a qualidade dos alimentos que são oferecidos a população. O que não faz referência apenas ao tempero, mas também à higiene, ao condicionamento e ao rigor dos restaurantes com as normas da vigilância sanitária. Para muitos comércios, o que os clientes não veem não os machuca, o que fica muito claro no programa “Pesadelo na Cozinha”.
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O reality show apresentado pelo chef Érick Jacquin, já chocou e revoltou muitos brasileiros ao revelar o que acontece nas cozinhas do Brasil. E, na maioria dos casos, essa reação estava ligada à falta de higiene. Apesar de gestores que são “a vergonha da profissão” estarem presentes desde a primeira temporada, os episódios que estão estreando em 2025 são particularmente chocantes.
De um administrador que mantém alimentos e panelas estocados a céu aberto, a outro que acumulou eletrodomésticos quebrados por tempo o suficiente para virarem ninho e cemitério de roedores, os novos casos estão repercutindo entre o público e gerando a pergunta: qual é realmente o papel da vigilância sanitária?
O papel da vigilância sanitária segundo a legislação brasileira
A legislação brasileira possui uma série de leis, normas regulatórias e exigências que tem por objetivo garantir a manutenção da saúde pública e facilitar a rotina dos profissionais da fiscalização. Para profissionais e empreendedores do setor de comercialização de alimentos, os pontos de maior atenção são: Lei nº 9.782/1999 (criação da ANVISA) e a Resoluções da Diretoria Colegiada (RDC) nº 216/2004, publicada por esse órgão.
Por mais que essa Lei não fale diretamente sobre a regulação de restaurantes e outros estabelecimentos que prestam serviços alimentícios, ela cria a ANVISA. Órgão federal que, nas palavras da própria legislação, “estabelece normas, propõe, acompanha e executa as políticas, as diretrizes e as ações de vigilância sanitária”.
De grandes produtoras alimentícias a laboratórios responsáveis pela produção de medicamentos e vacinas, essa legislação estabelece as funções da União para “normatizar, controlar e fiscalizar produtos, substâncias e serviços de interesse para a saúde”. Essa Lei é responsável por estabelecer os critérios que devem ser seguidos pelos comerciantes e produtores
Além disso, ela também estabelece as RDC’s, resoluções em vigilância sanitária que coordenam os estabelecimentos dos setores alimentício, farmacêutico e industrial. Incluindo os restaurantes que recebem a equipe do “Pesadelo na Cozinha”.
RDC nº 216/2004 - Boas Práticas para Serviços de Alimentação
A manipulação e armazenagem de alimentos sempre estará associada a riscos biológicos como intoxicações, parasitoses e infecções bacterianas graves. Para evitar esses cenários, a ANVISA criou a RDC nº 216/2004, que regula o funcionamento de comércios e empresas que oferecem alimentos para consumo imediato.
Para seguir funcionando e encarar as visitas surpresas de fiscais da vigilância, um proprietário precisa se atentar a alguns aspectos do seu restaurante e cozinha. A começar pela estrutura: todos os ambientes, paredes, teto e chão devem estar limpos e em bom estado, é obrigatório ter iluminação, ventilação e controle de pragas e os equipamentos devem estar em boas condições de funcionamento.
O armazenamento é outro ponto principal, com destaque para: separar produtos prontos de produtos crus e controlar a temperatura. Higiene é o básico, mas a RCD destaca a desinfecção regular - feita com produtos permitidos e armazenados de acordo com a legislação - de todos os itens e superfícies envolvidas na manipulação do alimento.
Pesadelo na Cozinha: restaurantes com irregularidades marcantes
Quando se pensa no programa que fica mais polêmico a cada temporada, todos os estabelecimentos tinham problemas com a RDC nº 216/2004. Alguns com irregularidades mais sérias do que outros. Em uma escala que vai de ficar bravo a passar mal, as reações do chef Jacquin falam muito sobre as situações encontradas e deixam claro quais casos são os mais extremos.
- “Barata morta”
Nahamalho (1ª temporada - episódio 4): restaurante japonês em que os peixes eram guardados sem tampa, proteção, papel, insulfilm ou data de validade - obrigatória pela Vigilância Sanitária. E, para coroar o cenário, havia uma barata morta em uma das janelas, o que - nas palavras do Jacquin - significa que havia outras vivas.
- “A cozinha é abandonada”:
Heros Burger (2º temporada - episódio 4): no que se refere à vigilância sanitária, a lanchonete com tema de quadrinhos tinha dois problemas principais: estoque exposto ao cheiro terrível de uma caixa de gordura e a ordem de evitar limpar o chão todos os dias para economizar na conta de água.
- “Inferno na cozinha”
Bawarchi (2ª temporada - episódio 7): nesse restaurante indiano, a visita inteira foi marcante, com direito a avistamento de baratas, fogão extremamente sujo, comida armazenada em recipientes encardidos e em mau estado, água suja acumulada, panelas e ingredientes expostos a céu aberto e misturados ao lixo.
- “Vergonha da profissão”
Pé de fava (2º temporada - episódio 1): A situação da cozinha - com móveis quebrados, itens pessoais guardados juntos com utensílios de cozinha, produtos de limpeza misturados com a comida, verduras podres, péssimas condições de armazenamento e falta de higiene - já era preocupante. Mas ao encontrar o freezer que ficava desligado 12h por dia, deixando carnes e legumes estragarem - Jacquin chegou ao seu limite.
- “Se eu chamar um fiscal, você vai preso”
Mamma Julia (3º temporada - episódio 1): eles mantinham um “quartinho da bagunça” anexado à cozinha, o espaço - abarrotado e encardido - era o criadouro perfeito para pragas. A falta de ventilação fazia os ingredientes apodrecerem e eles não eram descartados. Também havia sujeira e a falta de higiene, mas o que realmente revoltou Jacquin foi uma caixa de gordura aberta, suja e mal-cheirosa na entrada da cozinha.
A prática de um profissional da vigilância sanitária na fiscalização do comércio de alimentos prontos para consumo.
Em outras palavras, o papel de um profissional da Vigilância Sanitária e Qualidade dos Alimentos - e com foco no programa Pesadelo na Cozinha - é garantir a saúde pública através da fiscalização de estabelecimentos que comercializam comida. Essa função é extremamente necessária para evitar mortes e surtos de Doenças Transmitidas por Alimentos (DTA), ambas possibilidades quando se pensa em comidas mal conservadas, falta de higiene durante a preparação ou alimentos que não são bem cozidos.
Para evitar situações em que o pesadelo se torne real, esses profissionais atuam com vigilância e controle. Eles ouvem denúncias populares sobre locais de alto risco, fazem visitas surpresas para averiguar a rotina dos estabelecimentos e averiguam documentações e conformidade com a legislação.
Quando tudo está em ordem, emitem um certificado de segurança, informando o público que o local é seguro. Já em caso de irregularidade, eles oferecem um prazo para que sejam feitas as alterações necessárias e, caso a gestão do estabelecimento não entre em conformidade, podem interditar como medida de segurança pública.
É claro que nada é perfeito. O “Pesadelo na Cozinha” já dá um bom exemplo das falhas no sistema, mas em um relatório recente, a Organização Mundial da Saúde (OMS) revelou que, por ano, há 420 mil mortes mundiais causadas por intoxicação alimentar. Apesar de, no Brasil, os maiores desastres por DTA estarem relacionados a indústria, alguns casos marcaram as notícias nacionais e exemplificam a preocupação de Jacquin com a higiene dos restaurantes.
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Quando o pesadelo se torna real: cinco casos reais de intoxicação alimentar no Brasil
São vários os episódios em que Jacquin fecha um estabelecimento depois de encontrar situações insustentáveis na cozinha. Nesses casos, ele declara que o restaurante representa perigo para os clientes, podendo deixá-los doentes ou até matá-los.
Na maioria das vezes, os proprietários chegam a ficar bravos e insultados quando ouvem as críticas de Jacquin ou veem seus investimentos indo para o lixo na forma de alimentos mal armazenados e, em mais de uma ocasião, estragados. Contudo, a realidade mostra que a preocupação do chef é válida.
Segundo o Ministério da Saúde, o Brasil registra cerca de 750 surtos por DTHA anuais. Foram mais de 13 mil casos entre 2000 e 2021, nem todos são especificamente sobre restaurantes, mas em alguns deles o grande vilão é a falta de preocupação dos responsáveis. Há exemplos em todo o território nacional, com vários níveis de gravidades e diferentes públicos atingidos e alguns dos casos mais marcantes são:
- Birigüi (1998): cerca de 1.800 pessoas foram infectadas com Estafilococos através da merenda escolar. Do total de afetados, mais de 60% eram crianças. Os sintomas de intoxicação aparecem dentro de meia hora. 90% dos afetados procuraram postos de saúde e, desses, 5% se tornaram casos graves e precisaram de internação e, após alguns dias, receberam alta. Ninguém veio a óbito, mas a presença da bactéria indica que houve falha no preparo da comida, com ênfase na temperatura.
- Guarantã do Norte (2015): 107 pessoas passaram mal após comerem em buffet. Uma delas foi Rosalina Ribeiro Bueno, de 51 anos. Ela foi diagnosticada com Salmonella e morreu 24h depois de dar entrada no hospital com diarreia, dores abdominais, náuseas, vômitos e febres. Em entrevista, a coordenadora da Vigilância Sanitária - Eliamarta Machado - declarou que a contaminação ocorreu devido a algum alimento mal higienizado que foi consumido na festa.
- Jacobina (2023): mais de 400 pessoas passaram mal e uma veio a óbito após comerem alimentos infectados por salmonella em restaurante. Neuraci de Jesus dos Santos, a única vítima fatal, foi internada três vezes após refeição. Com o agravamento do seu caso, ela foi transferida para um hospital maior em Salvador. Como parte do tratamento, ela teve as duas pernas amputadas, mas não resistiu.
- João Pessoa (2025): em fevereiro 322 alunos da Universidade Federal da Paraíba passaram mal depois de comer no Restaurante Universitário. Em investigações preliminares, foi constatado o armazenamento de bens de consumo alimentar em temperatura inadequada, equipamentos com mal funcionamento e falta de higiene. A Vigilância Sanitária incubiu a administração de resolver esses problemas em duas semanas, correndo o risco de serem interditados.
- Araçatuba (2025): Bárbara Celloni, 25 anos, apresentou sintomas de intoxicação alimentar após comer em restaurante japonês no dia 05 de março. Com náuseas, falta de ar, perda de força muscular e problemas de visão, a suspeita foi infecção por botulismo, ela procurou ajuda médica e, após seis dias no hospital, veio a óbito. O quadro mostra que houve descuido na preparação e manuseio dos alimentos.
Conclusão
O programa "Pesadelo na Cozinha" é um entretenimento completo para todos. Contudo, ele também requer seriedade dos espectadores ao evidenciar situações e realidades precárias e perigosas que ocorrem dentro das cozinhas de restaurantes no Brasil. O programa de Érick Jacquin evidencia falhas severas com a legislação nacional e apenas uma fração da realidade enfrentada pelos profissionais da Vigilância Sanitária.
Ao inspecionar e regular estabelecimentos que comercializam comida pronta para o consumo, esses profissionais evitam surtos de Doenças Transmitidas por Alimentos e podem até mesmo salvar vidas. O que parece tão absurdo na programação da Band é apenas um dia comum para eles. Nos dias incomuns, eles têm que analisar e encontrar a origem da intoxicação que hospitalizou centenas de crianças ou matou uma mãe de família.
Os especialistas na área são peça fundamental do processo produtivo brasileiro, seja fiscalizando pelo Estado ou trabalhando em grandes corporações para garantir que tudo esteja nos conformes. Com a Pós EAD São Camilo em Vigilância Sanitária e Qualidade dos Alimentos, você pode ser o profissional que o Brasil precisa. Domine a regulação sanitária para impulsionar sua carreira, com foco em integrar produção, qualidade e vigilância para gerenciar riscos e reduzir desperdícios na indústria alimentícia.