“Não seriam as várias alegações da religião incompatíveis com a atitude de um cientista, sempre querendo ver os dados, devoto do estudo da Química, da Física, da Biologia e da Medicina? Ao abrir a porta de minha mente a essas possibilidades espirituais, teria eu começado uma guerra de visões de mundo que me destruiria e, por fim, enfrentaria uma vitória com baixas em ambos os lados?” — COLLINS, Francis S. A linguagem de Deus: um cientista apresenta evidências de que Ele existe. São Paulo: Editora Gente, 2007. p. 39.

O livro “A linguagem de Deus” do geneticista americano Francis S. Collins cristão e diretor geral do Projeto Genoma Humano gerou muita polêmica quando foi publicado em 2006. No ano seguinte, foi traduzido para o português, integrando a lista de obras importantes sobre ciência e religião. Na obra, o objetivo central de Collins é defender a conciliação entre a fé cristã e a ciência, buscando convencer tanto os cientistas quanto os cristãos que possuem reservas em relação a essa integração. Entre muitas de suas célebres frases que retratam esse espírito conciliatório de Collins, uma das mais significativa é a que faz um diagnóstico da tendência atual de lidar com esses dois campos de poder na cultura:“Uma das grandes tragédias de nosso tempo é a impressão criada de que ciência e religião precisam estar em guerra.” 

A visão que busca colocar a religião em guerra com a ciência é muito popular; existem grandes biólogos, físicos e químicos proponentes dessa vertente.. No entanto, trata-se apenas de um entre os vários modelos de conceber a interação entre a fé e a ciência. Além do mais, é o paradigma mais deficiente dentre todos os modelos, contribuindo para a divisão, ao invés do diálogo, e para a redução dos diversos aspectos da vida à meras descrições naturais. 

O  Dr. Denis Alexander — Diretor do Faraday Institute for Science and Religion e Fellow do St Edmund’s College, em Cambridge  — em artigo publicado no Faraday Papers (publicados pelo Instituto Faraday para Ciência e Religião) de 2007, propõe pelo menos quatro modelos para relacionar ciência e religião. 

O primeiro modelo é exatamente o “Modelo de Conflito”, e a proposta dos defensores é  entender a ciência e a religião existindo em oposição fundamental. A ideia é claramente expressa por John Worrall — professor de filosofia da ciência na London School of Economics e associado ao Centro de Filosofia das Ciências Naturais e Sociais da mesma instituição: “Ciência e religião estão em conflito irreconciliável... Não há modo de manter uma mentalidade apropriadamente científica e ser, ao mesmo tempo, um crente religioso verdadeiro.” 

O segundo modelo é conhecido como “Ministérios Não-Interferentes” ou MNI, popularizado pelo paleontólogo e biólogo evolucionista americano Stephen Jay Gould (1941-2002), em sua obra Rocks of Ages onde defende que ciência e religião operam em compartimentos separados, lidando com questões de tipos muito diferentes. Sendo  assim, por um lado não pode haver conflito entre os dois campos, mas por outro não pode haver diálogo também, visto que cada aspecto está falando de algo distinto. 

Passamos então para o terceiro modelo, o de “Fusão”. Grosso modo, a busca de seus defensores é fundir a ciência com a religião, ou a religião com a ciência. Os modelos de fusão, diz o Dr. Denis “[...] representam o oposto polar do modelo MNI, na sua tendência de apagar completamente a distinção entre os tipos científico e religioso de conhecimento, ou na tentativa de utilizar a ciência para construir sistemas religiosos de pensamento, ou vice-versa.” 

Um exemplo prático dessa forma de interação é a tentativa de construir as crenças religiosas a partir da “ciência corrente”. No entanto, como a ciência se move muito rápido, as teorias da moda de hoje podem se tornar nos restos de amanhã. Desta forma, “[...] aqueles que fundamentam suas crenças religiosas em teorias científicas talvez se descubram edificando sobre a areia”, conclui Dr. Denis. R. Alexander. 

Por fim, temos o quarto modo de interação, o “Modelo de Complementaridade”. Sua linguagem foi originalmente introduzida pelo físico dinamarquês Niels Bohr (1885-1962). Ele buscava relacionar as descrições da matéria  como partícula e como onda. Para aqueles que conhecem um pouco da história da física, vão compreender que foi necessário sustentar ambas, simultaneamente, para fazer justiça aos dados. 

Desde o tempo de Bohr, a ideia de complementaridade vem sendo grandemente ampliada também no interior do diálogo entre religião e ciência, de modo a incluir qualquer entidade (como a própria natureza do ser humano) que requeira múltiplos níveis de explicação para dar conta de sua complexidade. 

Esse modelo tem como principal proposta reconhecer a diversidade de aspectos existentes na realidade —  biológico, linguístico, musical, jurídico, histórico, físico, matemático, econômico, filosófico, espiritual, etc. — e compreendê-los como complementares; e não reduzi-los a apenas um escopo de análise e abstração.

Deste modo, ciência e religião, fé e razão, fazem parte da mesma realidade e podem se comunicar (dentro de diversas metodologias) sem necessariamente estarem em conflito, estritamente distanciadas ou confusamente fundidas. Sobre o complementarismo, o Dr. Denis escreveu: “Falando a linguagem da complementaridade, diríamos que a religião provê um conjunto adicional de explanações, fora dos poderes de avaliação da ciência, ligado a questões factuais sobre o propósito supremo, o valor e o sentido das coisas. Nada, nestes níveis explanatórios da religião, precisa existir em rivalidade com os níveis explanatórios da ciência: as descrições são complementares.”


Autor: Prof. Fernando Razente

 

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[1]Fernando Razente é Licenciado em História pela Universidade Unicesumar. Pós-graduado em Filosofia pelo Centro Universitário Cidade Verde (UNICV). Professor de História, Filosofia, Filosofia da Tecnologia e Estética, Sociologia e Cultura Religiosa do Colégio Sagrado Coração de Jesus (Nova Esperança) e Colégio Platão (Maringá). Professor de Filosofia e Ciência da Religião no Centro Universitário São Camilo nas disciplinas de História das Religiões no Ocidente e História das Interações entre Ciência e Fé. É diácono da Igreja Presbiteriana do Brasil, casado com Renata e pai da pequena Edith.

[2]Trata-se do reducionismo. O argumento que tem sido oferecido por essa vertente é o de que a constituição do mundo material pode ser exaustivamente explicada “reduzindo” seus elementos em partes sucessivamente menores até que nada reste para ser explicado. Por exemplo, o reducionismo químico-físico, que entende que as nossas ações e sentimentos como raiva, dor ou medo são estritamente reações de mecanismos químicos altamente complexos com computadores em nossas cabeças. Não existe realidade espiritual e somos apenas átomos e moléculas e os nossos pensamentos, como as crenças, não seriam “nada além de um conjunto de neurônios”.

[3]Os Faraday Papers abordam uma ampla gama de tópicos relacionados às interações entre ciência e religião. Uma lista completa dos Faraday Papers disponíveis pode ser vista em www.faraday-institute.org onde cópias gratuitas podem ser baixadas em formato pdf.

[4]ALEXANDER, Denis R. Modelos para Relacionar Ciência e Religião. Abril de 2007. © The Faraday Institute for Science and Religion. Tradução para o Português: Guilherme V.R. de Carvalho, Setembro de 2007.

[5]Worral, J. “Science Discredits Religion”, em: Peterson, M. L. & Van Arragon, R. J. (eds.) Contemporary Debates in Philosophy of Religion, Blackwell (2004), p. 60

[6]“Non-Overlapping Magisteria – NOMA”. Gould, S.J., Os Pilares do Tempo, Rocco (2002).

[7]ALEXANDER, Denis R. Modelos para Relacionar Ciência e Religião. Abril de 2007. © The Faraday Institute for Science and Religion. Tradução para o Português: Guilherme V.R. de Carvalho, Setembro de 2007.

[8]Ibidem.

[9]“Bohr elaborou sua posição no princípio de complementaridade, que afirma que onda e partícula são duas versões igualmente possíveis e complementares, embora mutuamente incompatíveis, de como objetos quânticos (como elétrons ou átomos) irão se revelar a um observador. Onda e partícula são duas formas complementares de existência, que se manifestam apenas após o objeto quântico ter entrado em contato com o observador. Antes desse contato, o objeto quântico não é nem partícula nem onda. De fato, antes do contato, não podemos nem mesmo dizer se o objeto existe ou não. Esses dois princípios, de incerteza e de complementaridade, forma a chamada ‘Interpretação de Copenhague da mecânica quântica’, desenvolvida principalmente por Bohr [...]” (GLEISER, Marcelo. A dança do universo, p. 295)

[10]É importante mencionar as valiosas contribuições de Herman Dooyeweerd (1894-1977), filósofo cristão holandês que produziu um sistema filosófico a partir de uma visão bíblica reformada denominada de “filosofia reformacional” ou “filosofia da ideia cosmonômica” cujo núcleo do pensamento está na rejeição do absolutismo da razão, isto é, de que a razão seja a fonte última da verdade, abrindo caminho para diversos modos de explicação coerente de uma mesma realidade, oferecendo uma antítese aos tipos de reducionismos que o racionalismo gera.

[11]ALEXANDER, Denis R. Modelos para Relacionar Ciência e Religião. Abril de 2007. © The Faraday Institute for Science and Religion. Tradução para o Português: Guilherme V.R. de Carvalho, Setembro de 2007.

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